Em seu livro “Instinto de Repórter”, editado pela Publifolha, a jornalista Elvira Lobato conta detalhes de uma série de reportagens sobre a relação da Igreja Universal do Reino de Deus, do bispo Edir Macedo, e duas empresas sediadas em paraísos fiscais. As matérias foram publicadas na Folha a partir de 1999. Um trecho que descreve o início das investigações da repórter está publicado abaixo.
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A IGREJA UNIVERSAL E OS PARAÍSOS FISCAIS
Em junho de 1999, chegou à redação da Folha, em São Paulo, um pacote de documentos que vinculavam a Igreja Universal do Reino de Deus, do bispo Edir Macedo, a duas empresas sediadas em paraísos fiscais: uma nas Ilhas Cayman, no Caribe, e outra na ilha de Jersey, no Canal da Mancha.
Eu tinha voltado a trabalhar na Sucursal do Rio de Janeiro em janeiro de 1997 - após passar cinco anos como repórter em São Paulo -, mas continuava subordinada à sede. Ou seja, respondia diretamente à Secretaria de Redação. Meu chefe, na ocasião, era Josias de Souza.
Numa manhã, ele me ligou para avisar que eu iria receber alguns documentos pelo malote. Disse que desconhecia a procedência deles, pois tinham sido enviados ao jornal em envelope com endereço e nome de remetente falsos, mas que parceria ser “coisa quente”. Eu teria o tempo necessário para a investigação e deveria dar atenção exclusiva àquele assunto.
Eram cópias de 75 contratos de empréstimo concedidos a seis integrantes da Igreja Universal do Reino de Deus - Alba Maria Silva da Costa, Claudemir Mendonça de Andrade, José Fernando Passos Costa, José Antônio Alves Xavier, Márcio de Araújo Lima e João Monteiro de Castro dos Santos - por duas empresas sediadas no exterior: Investholding e Cableinvest.
A Investholding, segundo os contratos, tinha como endereço uma caixa postal em George Town (Grand Cayman), enquanto o endereço da Cableinvest era de um escritório de advocacia em Jersey. Completavam o material cópias dos supostos documentos de constituição das duas empresas e dezenas de recibos de uma casa de câmbio uruguaia indicando que a igreja estaria comprando bens e empresas no Brasil com dinheiro trazido dos paraísos fiscais.
Provavelmente era dinheiro proveniente de doações de fiéis que tinha sido mandado para o exterior por doleiros e que retornava para o país como se fosse investimento estrangeiro. Esta é uma forma conhecida de “esquentar” recursos de origem suspeita (como caixa dois e propinas) ou não declarados ao fisco.
Meu desafio era provar a autenticidade dos documentos e mostrar o vínculo entre as empresas e a Igreja Universal. Em condições normais, é praticamente impossível levantar informações sobre empresas sediadas em paraísos fiscais, porque seus acionistas não são identificados nos atos de constituição das companhias. Elas existem apenas no papel e podem mudar de dono de um momento para outro, como se fosse uma ação preferencial ou um cheque ao portador. São firmas criadas por escritórios de advocacia, que têm compromisso de sigilo com os clientes e também não dão informação sobre os proprietários.
Na hipótese de os documentos serem verdadeiros, intuí que teriam sido enviados por alguém que participara diretamente do esquema. Só uma pessoa de confiança do grupo teria acesso ao contrato de constituição das empresas no exterior e aos comprovantes de que o dinheiro entrou no país sem passar pelo Banco Central.
A apuração desse caso levou um mês e exigiu pesquisas no Brasil e no exterior.
COMEÇO DA INVESTIGAÇÃO
Os 75 contratos da Cableinvest e da Investholding referiam-se a empréstimos a pessoas físicas no Brasil. Segundo o denunciante anônimo, 54 empréstimos estavam vinculados à compra da TV Record do Rio de Janeiro. Os demais contratos teriam financiado a compra de emissoras de rádios em outras cidades.
A Igreja Universal do Reino de Deus havia comprado a TV em 1992, em nome de seis fiéis que freqüentavam o templo do bairro da Abolição, na zona norte do Rio de Janeiro. Em dezembro de 1995, a TV Globo exibiu um vídeo gravado pelo ex-pastor Carlos Magno Miranda, no qual apareciam cenas de Edir Macedo ensinando como tomar dinheiro dos fiéis e recolhendo notas, ao lado de outros bispos. O ex-pastor acusou a cúpula da igreja de se apropriar das doações feitas pelos fiéis e de enviar o dinheiro ilegalmente para o exterior por intermédio de doleiros e do Banco de Crédito Metropolitano.
Após a denúncia, a Polícia Federal abriu inquérito para investigar a origem dos recursos usados na compra das emissoras da Rede Record no Rio e em São Paulo e apurar a acusação de remessa ilegal de divisas para o exterior. Simultaneamente, a Receita Federal iniciou uma devassa na contabilidade de todas as empresas ligadas à Universal e nas declarações de seus dirigentes.
A imprensa acompanhava o inquérito policial e também fazia suas investigações. Em janeiro de 1996, o jornal O Estado de S. Paulo publicou uma reportagem de Kássia Caldeira sobre a viagem do bispo Honorilton Gonçalves à Colômbia, em 1989, com o suposto objetivo de buscar dinheiro para quitar o pagamento da TV Record de São Paulo, adquirida por Edir Macedo naquele ano.
Em seguida, o jornal O Globo publicou duas reportagens de Elenilce Bottari mostrando que os compradores da TV Record do Rio eram “testas-de-ferro” da Igreja Universal e que não tinham patrimônio nem renda compatíveis com o compromisso que haviam assumido.
O advogado Arthur Lavigne, contratado pela Universal, havia entregado à Polícia Federal as declarações de Imposto de Renda dos seis compradores da Record do Rio, referentes ao ano de 1993, como prova de que eles tinham pago a emissora com empréstimos recebidos das empresas Investholding e Cableinvest, e não com recursos da igreja, como sustentava o ex-pastor Carlos Miranda.
O primeiro passo na minha apuração, depois de pesquisar o material que havia sido publicado três anos antes pela imprensa, foi procurar o delegado Matheus Cândido Martins, que havia presidido o inquérito da Polícia Federal no Rio de Janeiro. As declarações de Imposto de Renda apresentadas pelo advogado Lavigne, em que apareciam os empréstimos da Investholding e da Cableinvest, foram o primeiro indício de que os contratos em poder da Folha eram autênticos.
A Polícia Federal parou as investigações sem comprovar o elo das empresas com a Universal. O vínculo só foi confirmado com a reportagem da Folha, que provocou a abertura de um novo inquérito pela Polícia Federal, desta feita, em São Paulo. Acredito que a ligação entre a igreja e as empresas nos paraísos fiscais jamais seria descoberta se não fosse a denúncia anônima feita à Folha.
Outro passo da apuração foi verificar as informações existentes sobre a emissora na Delegacia Regional do Ministério das Comunicações no Rio de Janeiro. A razão social da TV Record do Rio era Rádio Difusão Ebenezer. Cadastro do Ministério das Comunicações mostrava que até junho de 1996 a emissora pertencia oficialmente ao bispo Nilson do Amaral Fanini (da Primeira Igreja Batista de Niterói) e ao ex-deputado federal Múcio Athayde.
Ou seja, durante quatro anos a Universal mandou na TV sem ser, legalmente, sua proprietária. A venda tinha sido acertada entre as partes, em 1992, mas a legislação sobre radiodifusão no Brasil diz que a transferência de emissoras de TV só tem validade depois de aprovada pelo presidente da República.
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Nas 21 páginas restantes do capítulo, Elvira descreve a pesquisa de informações em cartórios, a procura pelos sócios compradores da Record, a apuração realizada em São Paulo, o uso da internet para obter mais provas, a viagem ao Uruguai, a entrevista com os envolvidos no caso e as consequências da reportagem. O livro traz ainda as transcrições das matérias publicadas.
Nos outros 10 capítulos do livro, a autora apresenta reportagens sobre casos importantes como a construção, pelas Forças Armadas, de um poço para testes nucleares, na Serra do Cachimbo, o uso de funcionários públicos na eleição de Collor, o caso Banespa, entre outras.
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